sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A um homossexual assassinado

Adestrava cachorros.
Provavelmente nunca te morderam.
Hoje estás para sempre debaixo da terra
morto por homens
que adestram
demônios.

Renata Pallottini


Ao lado

Era uma sexta-feira dessas normais. Um dia como outro qualquer. A moça havia dormido até tarde e planejava almoçar e fazer compras para a limpeza da casa. O dia havia chegado, não era mais possível protelar. A casa seria limpa e ela então colocaria em ordem o que estava a seu alcance. Cumpriu o combinado com ela mesma: dedicou sua tarde de sexta a ouvir música e limpar minuciosamente cada cantinho da casa.
Barulho o dia todo: o aspirador funcionando, camille cantando, e a treze de maio funcionando em alto e bom som, ecoando normalmente suas sirenes e gritos para além das janelas do último andar. Dia tipicamente barulhento, nem se quisesse ela ouviria a morte ao lado.

Um homem foi assassinado. Uma parede fina os separava. Enquanto a arrumação estava sendo feita, o homem ao lado agonizava em seus últimos momentos de existência. Foi esfaqueado. O porteiro querido disse mais tarde que o apartamento foi todo destruído, que pelo jeito houve luta e que o teto ficou todo cheio sangue. Ela não ouviu nada. O banheiro ensopado e a casa totalmente desfigurada. Ela não ouviu nada. Ficou depois a pensar no que estaria fazendo no momento da primeira facada, qual verso da música cantava? Qual cômodo limpava? Batidas sem resposta foi só o que ela ouviu mais tarde. Normal, não? Bateram mais uma vez e nada. De novo bateram e nada. E aí as batidas foram ficando mais fortes e o batedor começava também a apertar muito a campanhia, como se a força da estridência daquele som pudesse salvar aquele homem do nada que ele então já se tornara... Só mais tarde ela percebeu que havia pessoas na casa. Eram da polícia, disse depois o porteiro querido. Tinham ido retirar o corpo. Chamava-se Cacá. Passava aspirador ou lavava a privada?
Era tão comum aquela porta sendo batida... O porteiro querido também contou que o Cacá recebia muita gente diferente e que essa gente subia sempre. Como quem subiu na última sexta-feira do Cacá. O cara chegou lá pelas 16 e trinta e pediu para o porteiro intefonar. Ele interfonou, o vizinho autorizou e o cara subiu. Tirava os pêlos do ralo ou limpava o carpete? Segundo o porteiro querido "o cara não subiu com a intenção de matar". Mas ele acabou mudando de idéia e matou, aparentemente depois da briguinha que eles tiveram. O cara, depois de matar, pegou a carteira e as chaves do vizinho, saiu, trancou o apartamento e deixou carteira e chaves na lata de lixo do último andar. Foi embora. A camêra de segurança não grava imagens... O porteiro querido disse que se fosse ele que estivesse na portaria na hora do ocorrido ele saberia identificar o assassino, mas que graças a deus ele escapou "disso aí". O caso é que a morte deve ter ocorrido entre 17 e 18 horas mais ou menos... entre 17 e 18 e horas o homem ao lado deixava de existir. Fazia xixi ou primeiro lanche da tarde? Eram já 19 horas e o vizinho deveria estar no trabalho às 18. Foi o sócio que foi até o apartamento e bateu na porta até se cansar. Preocupou- se com silêncio e foi ao bar para buscar uma chave do apartamento que ficava por lá. Aí ele voltou e abriu a porta: tudo destruído e o amigo morto. Mortinho. De tanto sangue que escorria tiveram que lavar o elevador. O vizinho era grande e tinha uma cachorrinha. A comida dele sempre cheirava muito muito bem e um dia a moça o elogiou e ele disse com orgulho que era chefe de cozinha. Uma vez também comentaram que quase não ouviam barulho um do outro, "Só da janela de ferro" ele disse, "e às vezes, ouço você cantar"... A moça ficou sabendo do ocorrido pela nova vizinha. No dia seguinte, saía feliz para almoçar, afinal a sexta-feira havia sido extremamente tranquila... "Sabia vizinha, que mataram ontem nosso vizinho?" O coração da moça pulsava e naquele momento ele então disparou. Era simpático e engraçado o vizinho. O que terá acontecido com a cachorrinha? No elevador há resquícios de sabão em pó. Quem lava o sangue nestes casos?
O vizinho morrendo e a moça cantando. Uma parede os separava. Ainda há barulho, cheiros e cantos, mas não há mais hoje para o vizinho engraçado que um dia existiu.

E.

Um comentário:

Elisa Carvalho disse...

Guria,
Dá uma olhada, eu já perdi a capacidade crítica neste momento.
Beijo.
E.

mulheres em 1938. Algumas décadas e?

DON´T DRINK TOO MUCH, as a man expects you to keep your dignity all evening. Drinking may make some girls seem clever, but most get silly...